O SEGUNDO SEXO 25 ANOS DEPOIS Entrevista com Simone de BeauvoirJohn Gerassi 1976 extraído (e traduzido) de Languages at Southampton University
Gerassi — Já se passaram 25 anos desde que O Segundo Sexo foi publicado. Muitas pessoas, principalmente nos Estados Unidos, o consideram o início do movimento feminista contemporâneo. Você consideraria...
Beauvoir — Acho que não. O movimento feminista atual, que começou há uns cinco ou seis anos, não conhecia realmente o livro. Posteriormente, com o crescimento do movimento, algumas das líderes tiraram parte de sua fundamentação teórica do livro. Mas não foi O Segundo Sexo que desencadeou o movimento. A maior parte das mulheres que se tornaram ativas no movimento era muito jovem quando o livro foi lançado, em 1949-50, para serem influenciadas por ele. O que me lisonjeia, é claro, foi elas o terem descoberto mais tarde.
Certamente algumas mulheres mais velhas — Betty Friedan, por exemplo, que dedicou The Feminine Mystique (A Mística Feminina) a mim — tinham lido O Segundo Sexo e talvez tenham sido influenciadas por ele de algum modo. Mas as outras, de forma alguma. Kate Millet, por exemplo, não me cita nenhuma vez em seu trabalho. Pode ser que elas tenham se tornado feministas pelas razões que eu explico em O Segundo Sexo; mas elas descobriram essas razões em suas experiências de vida, não em meu livro.
Gerassi — Você disse que sua própria consciência feminista surgiu da experiência de escrever O Segundo Sexo. Como você vê o desenvolvimento do movimento após a publicação do seu livro em termos de sua própria trajetória?
Beauvoir — Ao escrever O Segundo Sexo tomei consciência, pela primeira vez, de que eu mesma estava levando uma vida falsa, ou melhor, estava me beneficiando dessa sociedade patriarcal sem ao menos perceber. Acontece que bem cedo em minha vida aceitei os valores masculinos e vivia de acordo com eles. É claro, fui muito bem-sucedida e isso reforçou em mim a crença de que homens e mulheres poderiam ser iguais se as mulheres quisessem essa igualdade.
Em outros termos, eu era uma intelectual. Tive a sorte de pertencer a uma família burguesa, que, além de financiar meus estudos nas melhores escolas, também permitiu que eu brincasse com as idéias. Por causa disso, consegui entrar no mundo dos homens sem muita dificuldade. Mostrei que poderia discutir filosofia, arte, literatura, etc., no “nível dos homens”. Eu guardava tudo o que fosse próprio da condição feminina para mim. Fui, então, motivada por meu sucesso a continuar, e, ao fazê-lo, vi que poderia me sustentar financeiramente assim como qualquer intelectual do sexo masculino, e que eu era levada a sério assim como qualquer um de meus colegas do sexo masculino. Sendo quem eu era, descobri que poderia viajar sozinha se quisesse, sentar nos cafés e escrever, e ser respeitada como qualquer escritor do sexo masculino, e assim por diante. Cada etapa fortalecia meu senso de independência e igualdade. Portanto, tornou-se muito fácil para mim esquecer que uma secretária nunca poderia gozar destes mesmos privilégios. Ela não poderia sentar-se num café e ler um livro sem ser molestada. Raramente ela seria convidada para festas por seus “dotes intelectuais”.
Ela não poderia pegar um empréstimo ou comprar uma propriedade. Eu sim. E pior ainda, eu costumava desprezar o tipo de mulher que se sentia incapaz, financeiramente ou espiritualmente, de mostrar sua independência dos homens. De fato, eu pensava, sem dizê-lo a mim mesma, “se eu posso, elas também podem”. Ao pesquisar e escrever O Segundo Sexo foi que percebi que meus privilégios resultavam de eu ter abdicado, em alguns aspectos cruciais pelo menos, à minha condição feminina. Se colocarmos o que estou dizendo em termos de classe econômica, você entenderá facilmente. Eu tinha me tornado uma colaboracionista de classe. Bem, eu era mais ou menos o equivalente em termos da luta de sexos. Através de O Segundo Sexo tomei consciência da necessidade da luta. Compreendi que a grande maioria das mulheres simplesmente não tinha as escolhas que eu havia tido; que as mulheres são, de fato, definidas e tratadas como um segundo sexo por uma sociedade patriarcal, cuja estrutura entraria em colapso se esses valores fossem genuinamente destruídos. Mas assim como para os povos dominados econômica e politicamente, o desenvolvimento da revolução é muito difícil e muito lento.
Primeiro, as mulheres têm que tomar consciência da dominação. Depois, elas têm de acreditar na própria capacidade de mudar a situação. Aquelas que se beneficiam de sua “colaboração” têm que compreender a natureza de sua traição. E, finalmente, aquelas que têm mais a perder por tomar posição, isto é, mulheres que, como eu, buscaram uma situação confortável ou uma carreira bem-sucedida, têm que estar dispostas a arriscar sua situação de segurança — mesmo que seja apenas se expondo ao ridículo — para alcançar respeito próprio. E elas têm que entender que suas irmãs que são mais exploradas serão as últimas a se juntarem a elas. Uma esposa de operário, por exemplo, é menos livre para se juntar ao movimento. Ela sabe que seu marido é mais explorado do que a maioria das líderes feministas e que ele depende de seu papel de mãe/dona-de-casa para sobreviver. De qualquer forma, por todas essas razões, as mulheres não se mobilizaram. Ah sim, houve alguns pequenos movimentos bem interessantes, bem inteligentes, que lutaram por promoções políticas, pela participação das mulheres na política, no governo. Eu não me refiro a esses grupos. Então veio 1968 e tudo mudou. Sei que alguns eventos importantes aconteceram antes disso.
O livro de Betty Friedan, por exemplo, foi publicado antes de 1968. Na verdade, as mulheres norte-americanas já estavam se mobilizando nessa época. Elas, mais do que ninguém, e por razões óbvias, estavam cientes das contradições entre as novas tecnologias e o papel conservador de manter as mulheres na cozinha.
Com o desenvolvimento da tecnologia — tecnologia como poder do cérebro e não dos músculos — a lógica masculina de que as mulheres são o sexo frágil e, por isso, devem representar um papel secundário não pôde mais ser sustentada. Como as inovações tecnológicas eram muito difundidas nos Estados Unidos, as mulheres norte-americanas não escaparam às contradições. Foi, portanto, natural que o movimento feminista tivesse seu maior ímpeto no coração do capitalismo imperial, ainda que esse ímpeto tenha sido estritamente econômico, isto é, a reivindicação por salários iguais, trabalhos iguais. Mas foi dentro do movimento anti-imperialista que a verdadeira consciência feminista se desenvolveu. Tanto no movimento contra a Guerra do Vietnã nos EUA quanto logo depois da rebelião de 1968 na França e em outros países europeus, as mulheres começaram a sentir seu poder. Ao compreender que o capitalismo leva necessariamente à dominação dos povos pobres em todo o mundo, milhares de mulheres começaram a aderir à luta de classes — mesmo quando não aceitavam o termo “luta de classes”. Elas se tornaram ativistas. Elas aderiram às marchas, às demonstrações, às campanhas, aos grupos clandestinos, à militância de esquerda. Elas lutavam, tanto quanto qualquer homem, por um futuro sem explorações, sem alienações. Mas o que aconteceu? Nos grupos ou organizações a que aderiram, elas descobriram que, assim como na sociedade que tentavam combater, também eram tratadas como o segundo sexo. Aqui na França, e eu me arrisco a dizer também nos EUA, elas perceberam que os líderes eram sempre os homens. As mulheres se tornavam datilógrafas e serviam café nesses grupos pseudo-revolucionários. Bom, eu não deveria dizer pseudo. Muitos dos participantes desses movimentos eram revolucionários genuínos. Mas tendo sido treinados, educados e moldados em uma sociedade patriarcal, estes revolucionários trouxeram esses valores para o movimento. Compreensivelmente, estes homens não iriam abrir mão desses valores voluntariamente, assim como a classe burguesa não abrirá mão de seu poder voluntariamente. Dessa forma, assim como cabe ao pobre tomar o poder do rico, também cabe às mulheres tirar o poder dos homens.
E isso não quer dizer que, por outro lado, elas devam dominar os homens. Significa estabelecer igualdade. Assim como o socialismo, o verdadeiro socialismo, estabelece igualdade econômica entre todos os povos, o movimento feminista aprendeu que ele teria que estabelecer igualdade entre os sexos tirando o poder da classe que liderava o movimento, isto é, dos homens. Colocando em outros termos: uma vez dentro da luta de classes, as mulheres perceberam que a luta de classes não eliminava a luta de sexos. Foi nesse ponto que eu mesma tomei consciência do que acabei de dizer. Antes disso, estava convencida de que a igualdade entre homens e mulheres só era possível com a destruição do capitalismo e, portanto — e é esse “portanto” que é uma falácia — nós temos que lutar primeiro a luta de classes. É verdade que a igualdade entre homens e mulheres é impossível no capitalismo. Se todas as mulheres trabalharem tanto quanto os homens, o que acontecerá com essas instituições das quais o capitalismo depende, instituições como igreja, casamento, exército, e os milhões de fábricas, lojas, etc. que dependem de trabalho de meio-expediente e mão-de-obra barata? Mas não é verdade que a revolução socialista estabelece necessariamente a igualdade entre homens e mulheres. Dê uma olhada na União Soviética ou na Tchecoslováquia, onde (mesmo se nós estivermos dispostos a chamar esses países de “socialistas”, e eu não estou) há uma confusão profunda entre emancipação do proletariado e emancipação da mulher. De alguma forma, o proletariado sempre termina sendo constituído de homens. Os valores patriarcais permaneceram intactos, tanto lá quando aqui. E isso — essa consciência entre as mulheres de que a luta de classes não engloba a luta de sexos — é que é novo. A maioria das mulheres sabe disso agora. Essa é a maior conquista do movimento feminista. É a que vai alterar a história nos próximos anos.
Gerassi — Mas essa consciência está limitada às mulheres que são de esquerda, isto é, mulheres comprometidas com a reestruturação de toda a sociedade.
Beauvoir — Bom, é claro, já que as outras são conservadoras, o que significa que elas querem conservar o que foi ou o que é. Mulheres de direita não querem revolução. Elas são mães, esposas, devotadas aos seus homens. Ou, quando são agitadoras, o que elas querem é um pedaço maior do bolo. Elas querem salários melhores, eleger mulheres para os parlamentos, ver uma mulher se tornar presidente. Fundamentalmente, acreditam na desigualdade, só que elas querem estar no topo e não por baixo. Mas elas se acomodam bem ao sistema como ele é ou com as pequenas mudanças para acomodar suas reivindicações. O capitalismo certamente pode se dar ao luxo de permitir às mulheres a servir o exército ou entrar para a força policial. O capitalismo é certamente inteligente o suficiente para deixar mais mulheres participarem do governo. O pseudo-socialismo pode certamente permitir que uma mulher se torne secretária-geral de seu partido. Isso são apenas reformas sociais, como o seguro social ou as férias pagas. A institucionalização das férias pagas mudou a desigualdade do capitalismo? O direito das mulheres trabalharem em fábricas com salários iguais aos dos homens mudou os valores masculinos da sociedade Tcheca? Mas mudar todo o sistema de valor de qualquer sociedade, destruir o conceito de maternidade: isso é revolucionário.
Uma feminista, quer ela se autodenomine esquerdista ou não, é uma esquerdista por definição. Ela está lutando por uma igualdade plena, pelo direito de ser tão importante, tão relevante, quanto qualquer homem. Por isso, incorporada em sua revolta pela igualdade de gêneros está a reivindicação pela igualdade de classes. Numa sociedade em que o homem pode ser a mãe, em que, vamos dizer, para colocar o argumento em termos de valores para que fique claro, a assim chamada “intuição feminina” é tão importante quanto o “conhecimento masculino” — para usar a linguagem corrente, apesar de absurda — em que ser gentil ou delicado é melhor do que ser durão; em outras palavras, em uma sociedade na qual a experiência de cada pessoa é equivalente a qualquer outra, você já estabeleceu automaticamente a igualdade, o que significa igualdade econômica e política e muito mais. Dessa forma, a luta de sexos inclui a luta de classes, mas a luta de classes não inclui a luta de sexos. As feministas são, portanto, esquerdistas genuínas. De fato, elas estão à esquerda do que nós chamamos tradicionalmente de esquerda política.
Gerassi — Mas isso é real? Quer dizer, eu aprendi, por exemplo, a nunca usar a palavra “gostosa”, a prestar atenção nas mulheres em qualquer discussão de grupo, a lavar a louça, arrumar a casa, fazer as compras. Mas será que eu sou menos sexista em meus pensamentos? Será que eu rejeitei os valores masculinos?
Beauvoir — Você quer dizer, no seu íntimo? Para ser sincera, quem se importa? Pense um pouco. Você conhece um sulista racista. Você sabe que ele é racista porque o conhece desde que nasceu. Mas ele nunca diz “crioulo”. Ele escuta a todas as reclamações dos homens negros e dá o melhor de si para lidar com elas. Ele combate outros racistas. Ele insiste em dar uma educação acima da média para crianças negras, para compensar os anos em que faltou escola para essas crianças. Ele dá recomendações para que homens negros consigam empréstimos bancários. Ele dá apoio a candidatos negros em seu distrito através de ajuda financeira e com seu voto. Você acha que os negros se importam que ele seja tão racista quanto antes em seu íntimo? Essencialmente, exploração é hábito. Se você consegue controlar seus hábitos, fazer com que seja “natural” ter hábitos contrários, já é um grande passo. Se você lava a louça, arruma a casa, e toma a atitude de que não se sente menos “homem” por fazê-lo, você estará ajudando a estabelecer novos hábitos. Duas gerações sentindo que têm que parecer não-racistas o tempo inteiro e a terceira geração não será racista de fato. Então finja ser não-sexista, e continue fingindo. Pense nisso como um jogo. Em seus pensamentos íntimos, pode continuar pensando que você é superior às mulheres. Enquanto você representar de forma convincente – lavando a louça, fazendo as compras, arrumando a casa, cuidando das crianças – você estará abrindo precedentes, especialmente para homens como você, que tem certa pose de “machão”. A questão é: eu não acredito nisso. Eu não acredito que você realmente faça o que diz. Uma coisa é lavar a louça, trocar fraldas dia e noite é outra.
Gerassi — Bem, eu não tenho filhos...
Beauvoir — Por que não? Porque você escolheu não tê-los. Acha que as mães que você conhece escolheram ter filhos? Ou elas foram intimidadas a tê-los? Ou, em termos mais sutis, elas foram criadas para pensar que é natural e normal e próprio da mulher ter filhos e, por isso, escolheram tê-los? Esses são os valores que têm que mudar.
Gerassi — Certo. E é por isso, e eu compreendo, que muitas feministas insistem em ser separatistas. Mas em termos de revolução, tanto a delas quanto a minha, será que podemos ganhar se nos separarmos em dois grupos totalmente diferentes? Será que o movimento feminista conseguirá alcançar seu objetivo excluindo os homens de sua luta? Até hoje, a parte dominante do movimento das mulheres, aqui na França, e isso também é verdade para os Estados Unidos, é separatista.
Beauvoir — Só um minuto. Nós temos que investigar o porquê de elas serem separatistas. Não posso falar pelos Estados Unidos, mas aqui na França há muitos grupos, grupos de conscientização, dos quais os homens são excluídos porque as militantes acham muito importante redescobrir sua identidade como mulheres. Elas só podem fazê-lo conversando entre elas, contando entre si coisas que elas nunca ousariam falar na frente dos maridos, amantes, irmãos, pais, ou qualquer outro representante do poder masculino. A necessidade de falar com a intensidade e honestidade desejada só pode ser realizada dessa maneira. E elas têm conseguido se comunicar com uma profundidade que nunca pensei que fosse possível quando eu tinha 25 anos. Até mesmo quando eu estava entre minhas amigas mulheres mais íntimas naquela época, problemas verdadeiramente femininos nunca eram discutidos. Então agora, pela primeira vez, por causa desses grupos de conscientização, e por causa da força do desejo de confrontar genuinamente os problemas femininos dentro desses grupos, amizades verdadeiras entre mulheres se desenvolveram. Eu quero dizer, no passado, na minha juventude, até bem recentemente, as mulheres não costumavam se tornar amigas de verdade de outras mulheres. Elas se viam umas às outras como rivais, até mesmo inimigas, ou, na melhor das hipóteses, como concorrentes. Atualmente, sobretudo como resultado desses grupos de conscientização, as mulheres não se tornaram apenas capazes de construir amizades verdadeiras entre si, elas também aprenderam a ser calorosas, abertas, profundamente ternas umas com as outras: elas estão transformando irmandade e fraternidade em realidade — e sem tornar esse relacionamento dependente de uma sexualidade lésbica. É claro, há muitas batalhas, até mesmo batalhas estritamente feministas com impacto social, das quais as mulheres esperam que os homens participem, e muitos têm participado. Estou pensando, por exemplo, na luta pela legalização do aborto aqui na França. Quando organizamos a primeira demonstração de peso pela legalização do aborto há três ou quatro anos, lembro bem da grande quantidade de homens presentes. Isso não quer dizer que eles não fossem sexistas: para extrair o que foi inculcado no padrão de comportamento e sistema de valores de uma pessoa desde a primeira infância leva-se anos, décadas. Mas aqueles eram homens que, pelo menos, estavam cientes do sexismo na sociedade e tomaram uma posição política contra isso. Nessas ocasiões, os homens são bem-vindos, até mesmo encorajados, a aderir à luta.
Gerassi — Mas também há muitos grupos, pelo menos aqui na França, que proclamam seu separatismo com orgulho e definem sua luta como estritamente lésbica.
Beauvoir — Sejamos precisos. Dentro do MLF [Movimento de Libertação da Mulher] há, sim, muitos grupos que se denominam lésbicos. Muitas dessas mulheres, graças ao MLF e aos grupos de conscientização, podem dizer agora abertamente que são lésbicas, e isso é ótimo. Não costumava ser assim. Há outras mulheres que se tornaram lésbicas por uma espécie de compromisso político: isto é, elas acham que é uma atitude política ser lésbica; dentro da luta de sexos, isso seria mais ou menos o equivalente aos princípios do black power na luta racial. E é verdade que essas mulheres tendem a ser mais dogmáticas com relação à exclusão dos homens de sua luta. Mas isso não significa que elas ignorem as numerosas lutas que estão sendo travadas por todo o mundo contra a opressão. Por exemplo, quando Pierre Overney, o jovem militante maoísta, foi assassinado a sangue frio por um policial de uma fábrica da Renault por não dispersar durante uma manifestação, e toda a esquerda organizou uma marcha de protesto em Paris, todas as assim chamadas separatistas lésbicas radicais aderiram à manifestação e levaram flores ao seu túmulo. Isso, por outro lado, não significa que elas expressaram sua solidariedade por Overney, o homem, mas que elas se identificaram com o protesto contra o Estado que explora e comete abusos contra as pessoas — homens e mulheres.(...)
Gerassi — A conversa sobre mulheres serem mais livres me intriga. Em nossa sociedade, a liberdade é alcançada com dinheiro e poder. As mulheres têm mais poder hoje, depois de quase uma década do movimento feminista?
Beauvoir — No sentido em que você pergunta, não. As intelectuais, mulheres jovens que estão dispostas a correr o risco de serem marginalizadas, as filhas de ricos, quando estão dispostas e são capazes de romper com os valores de seus pais: essas mulheres sim, são mais livres. Isto é, por causa de seu nível de educação, estilo de vida, ou recursos financeiros, essas mulheres conseguem escapar de uma sociedade competitiva, viver em comunidades ou à margem, e desenvolver relações com outras mulheres similares a elas ou homens sensíveis aos seus problemas, e, dessa forma, se sentirem mais livres. Em outras palavras, como indivíduos, as mulheres que podem se sustentar, seja lá por qual motivo, conseguem se sentir mais livres. Mas como classe, as mulheres certamente não são mais livres, precisamente porque, como você diz, elas não têm poder econômico. Atualmente, há todo o tipo de estatística para provar que o número de mulheres advogadas, médicas, publicitárias, etc., está crescendo. Mas essas estatísticas são enganosas. O número de advogadas e executivas poderosas não aumentou. Quantas advogadas podem pegar um telefone e ligar para um juiz ou oficial do governo para marcar um horário ou pedir favores especiais? Essas mulheres têm que operar através de seus equivalentes homens, já estabelecidos. Médicas? Quantas são cirurgiãs, diretoras de hospital? Mulheres no governo? Sim, poucas. Na França nós temos duas. Uma, séria, trabalhadora, Simone Weil, é ministra da saúde. A outra, Françoise Giroud, que é a ministra responsável pelas questões femininas é basicamente uma peça de mostruário, destinada a aplacar as necessidades das mulheres burguesas de integração no sistema. Mas quantas mulheres controlam verbas no Senado? Quantas mulheres controlam a política editorial de jornais? Quantas são juízas? Quantas são presidentes de banco, capazes de financiar empresas? Só porque há muito mais mulheres em posições de nível médio, como os jornalistas dizem isso não quer dizer que elas têm poder. E até mesmo essas mulheres têm que jogar o jogo dos homens para serem bem-sucedidas. Agora, isso não quer dizer que eu não acredito que as mulheres tenham feito progresso na luta. Mas o progresso é resultado da ação de massa. (...) O que estou dizendo é que, em ações de massa, as mulheres têm poder. Quanto mais as mulheres tomarem consciência da necessidade dessas ações de massa, mais progresso elas alcançarão. E, voltando ao caso das mulheres que podem financiar a busca da liberação individual, quanto mais ela puder influenciar suas amigas e irmãs, mais essa conscientização se espalhará, o que, por outro lado, quando frustrada pelo sistema, estimulará a ação de massa. É claro, quanto mais essa conscientização se espalhar, mais agressivos e violentos os homens se tornarão. Mas então, quanto mais agressivos forem os homens, mais as mulheres precisarão de outras mulheres para revidar, isto é, maior será a necessidade de ações de massa. Hoje em dia, a maioria dos operários do mundo capitalista está ciente da luta de classes, quer eles se denominem Marxistas ou não, de fato, quer eles sequer já tenham ouvido falar de Marx ou não. E assim deve acontecer na luta de sexos. E acontecerá.
Gerassi — Você me disse ano passado que estava pensando em escrever outro livro sobre mulheres, uma espécie de seqüência de O Segundo Sexo. Você vai escrevê-lo?
Beauvoir — Não. Em primeiro lugar, esse tipo de trabalho teria que resultar de um esforço coletivo. E, além disso, ele teria que se basear mais na prática do que na teoria. O Segundo Sexo foi pelo caminho inverso. Agora, isso não é mais válido. É na prática que hoje podemos ver como a luta de classes e a luta de sexos se intercalam, ou, pelo menos, como elas podem ser articuladas. Mas isso vale para todas as lutas atuais: nós temos que formular nossas teorias com base na prática, e não o contrário. O que se faz realmente necessário é que todo um grupo de mulheres, de todo tipo de país, reúna suas experiências de vida e que, a partir dessas experiências, nós possamos identificar os padrões com os quais as mulheres lidam em todos os lugares. E tem mais, essa informação deveria ser coletada de todas as classes, e isso é duas vezes mais difícil. Afinal, as mulheres que travam a luta pela libertação hoje em dia são, em sua maioria, intelectuais burguesas; as esposas de operários e até mesmo as operárias se mantêm presas ao sistema de valor da classe média. Tente, por exemplo, conversar com uma operária sobre os direitos das prostitutas e o respeito que se deve a elas. A maioria das operárias ficaria chocada com essa idéia. Conscientizar as operárias é um processo muito lento e necessita de muito tato. Eu sei que há extremistas do MLF que estão tentando fazer com que as esposas de operários se rebelem contra seus maridos, considerando-os opressores masculinos. Acho que isso é um erro. Uma esposa de operário, aqui na França pelo menos, não hesitará em responder: “mas o meu inimigo não é o meu marido, e sim meu patrão”. Até mesmo se ela tem que lavar as meias do marido e fazer o jantar dele depois de também ela ter passado todo o dia em alguma fábrica. É o mesmo nos Estados Unidos, onde as mulheres negras se recusaram a dar ouvidos às defensoras do movimento de libertação das mulheres porque elas eram brancas. Essas mulheres negras continuaram apoiando seus maridos negros apesar da exploração, simplesmente porque as pessoas que tentaram conscientizá-las sobre a exploração eram brancas. Gradualmente, no entanto, uma feminista burguesa consegue atingir uma esposa de operário, assim como nos Estados Unidos, hoje em dia, há algumas mulheres negras — muito poucas, eu admito — que dizem, “não, nós não queremos nos submeter à opressão de nossos homens sob o pretexto de que eles são negros e de que nós temos que lutar juntos contra os brancos; não, isso não é motivo para que nossos homens nos oprimam, só porque eles são nossos homens negros”. No entanto, a luta de classes pode encorajar e, de fato, encoraja e promove a luta de sexos de maneiras bem concretas. Nos últimos anos, por exemplo, houve muitas greves aqui na França em fábricas onde os operários eram quase todos do sexo feminino. Estou pensando na greve da indústria têxtil em Troyes, no norte do país, ou na Nouvelles Galeries em Thionville, ou a famosa greve da Lip. Em cada caso, as operárias não só adquiriram uma nova consciência como também passaram a acreditar mais em seu poder, e essa atitude abalou o sistema machista que elas vivenciavam em casa. Na Lip, por exemplo, as mulheres tomaram a fábrica e se recusaram a evacuar o prédio apesar das ameaças da polícia de usar a força para tirá-las de lá. A princípio, seus maridos ficaram muito orgulhosos de suas esposas militantes. Os homens levaram comida, ajudaram a fazer cartazes para o piquete, etc. Mas quando as mulheres decidiram ser totalmente iguais aos poucos homens que também trabalhavam na Lip e que também participavam da greve, os problemas começaram a surgir. Os grevistas da Lip decidiram organizar turnos para vigiar a fábrica e impedir que a polícia invadisse. Isso significava serviço noturno. Oh, oh. Então, de repente, os maridos das grevistas ficaram incomodados. “Vocês podem fazer greve e piquete o quanto quiserem,” eles disseram, “mas somente durante o dia, à noite não. O que, serviço de vigilância noturno? Ah não! Dormir em turnos em grandes quartos coletivos? Ah não.” Naturalmente, as operárias resistiram. Elas tinham lutado por igualdade, não iriam desistir agora. Assim, elas se envolveram com duas lutas: a luta de classes contra os patrões da Lip, a polícia, o governo, etc., por um lado, e a luta de sexos contra seus próprios maridos. Sindicalistas da Lip contaram que as mulheres se transformaram completamente depois da greve, dizendo “uma coisa que eu aprendi disso tudo foi que nunca mais eu vou deixar meu marido fazer as vezes de patrão em casa. Agora eu sou contra todos os patrões.”
Gerassi — Você escreveu que teve uma vida boa e não se arrepende de nada. Você sabia que há muitos casais que tomam sua vida com Sartre como modelo, especialmente no sentido de que vocês não tinham ciúmes um do outro, que tinham um relacionamento aberto, e que deu certo por 45 anos?
Beauvoir — Mas é ridículo nos usar como modelo. As pessoas têm que encontrar seu próprio estilo, sua própria estrutura. Sartre e eu tivemos muita sorte, mas nossa criação também tinha sido muito singular, excepcional. Nós nos conhecemos quando éramos bem jovens. Ele tinha 23 anos, eu 20. Nós ainda não estávamos formados, apesar de já estarmos moldados para sermos intelectuais, com motivações semelhantes. Para nós dois, a literatura tinha substituído a religião.
(...)Então, à medida que o meu relacionamento com Sartre se aprofundou, me tornei convicta de que eu era insubstituível em sua vida, e ele na minha. Em outras palavras, nós estávamos totalmente seguros de que nosso relacionamento também era totalmente sólido, novamente, predestinado, apesar de, na época, não levarmos essa palavra a sério. Quando se é tão confiante, é fácil não sentir ciúmes. Mas é claro que se eu achasse que outra mulher representasse o mesmo papel que eu na vida de Sartre, eu teria tido ciúmes.Gerassi — Você está otimista? Acha que as mudanças pelas quais está lutando se realizarão?
Beauvoir — Eu não sei. De qualquer forma, não durante a minha vida. Talvez em quatro gerações. Não sei quanto à revolução. Mas as mudanças pelas quais as mulheres estão lutando, essas sim, tenho certeza de que, a longo prazo, as mulheres vencerão.
Interviewed by John Gerassi, Society , Jan.-Feb. 1976, pp. 79-85 Copyright © 1995 by Transaction Publishers; all rights reservedReprinted by permission of Transaction Publishers. John Gerassi, 'The Second Sex 25 Years on' in Society Jan/Feb 1976 pp 79-85.
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